sábado, outubro 07, 2006

Garoto (O Conto - Episódio 1 de 7)


Há uns tempos atrás, nesta mesma Ilha donde vos falo, havia uma criança.

É claro que não havia só uma criança, de facto elas eram 46, com o Garoto incluído. Garoto, como se percebe facilmente, era a criança de que vos irei falar.

Garoto era filho da Ilha, era o que se ouviria dos habitantes caso se fizesse a pergunta. Mas criança nenhuma nasce sem pai ou mãe. Alguém diria que ele era filho de uma ilhoa, que não teria resistido ao parto. Ou talvez filho de algum náufrago. Os meninos mais velhos, pra assustar os mais novos, diziam que o Garoto era filhote de cobra com macaco, e que era por isso que ele voava de árvore em árvore ou submergia por horas. A nossa criança prefiria assumir-se filho da Ilha. Pelo menos era o que ele sentia. A Ilha era a sua casa, o seu quintal e o seu quarto. Tudo na Ilha era dele. E ele era feliz por isso.

Assim se percebe que Garoto não tinha família. Mas não tendo família, tinha várias famílias. Cada casa da Ilha tinha uma família que era como sua. Assim, pertencia a uma Família com 20 mães, 16 pais, 45 irmãos, duas dúzias de avós e centenas de animais de estimação. Nunca tinha passado fome, pois mesmo quando não tivesse almoço quente numa de suas casas, a Ilha lhe dava todo o alimento que ele necessitasse, bastava subir a uma árvore ou mergulhar ao mar. Ele não estava sozinho, e era feliz por isso.

A razão principal que distinguia Garoto das outras crianças eram os livros. Apesar da sua maior vontade, nunca tinha entrado numa sala de aula ou tido alguém que lhe ensinasse as letras. Mas também nunca tinha tido um muro à sua volta. Talvez por isso ele fosse feliz.

A feira era o principal acontecimento do lugar. Reuniam-se no cais da Ilha todos os pescadores, artesãos e todos os outros habitantes. Vinham pessoas de fora da Ilha, ver o que lhes ofereciam os ilhéus. Eram barquinhos, barcos e barcaças que atracavam trazendo pessoas que, para o Garoto, eram estranhas. Estranhas talvez não, mas no mínimo diferentes. E isso intrigava-o. Olhava para elas com admiração, por serem da Cidade. Mas temia-as, pois eram muitas as estórias macabras sobre a gente que morava pra lá das margens da Ilha. Cada vez que, sozinho, confrontando o mar da Ilha, se imaginava noutras terras, a adrenalina acelerava o seu pulso. E era isso que o fazia pensar cada vez mais na Cidade, e cada vez mais gostava de ficar sozinho, com os olhos no horizonte, que não vendo terra, imaginavam o que estava para lá do mar.


Mas não se sentia capaz de sair dali, da sua casa.

Espera ser continuado...

1 Comments:

At 1:17 PM, Anonymous Anônimo said...

Estou imensamente comovido... com tudo, com a iniciativa, com o vosso grande talento, com o coração que puseram e expuseram em vossos capítulos/episódios, com o garoto chamado Garoto, com esse mar, essa ilha, essa flor de maracujá que eu (secretamente) conheci e relembro...

Obrigado, meus queridos... Espero que a história continue, e que enfim, nunca chegue a ter um fim!

 

Postar um comentário

<< Home