sexta-feira, janeiro 06, 2006

Só há um domingo por semana


O meu segundo post e, mais uma vez, vou ceder o lugar ao meu "new favorite author", António Lobo Antunes... que posso eu dizer? no lugar de mandar aqui umas caralhadas volto realmente a preferir partilhar mais um texto que me voltou a deixar estupidificado, tal é a forma como consegue colocar em palavras, articuladas em frases e parágrafos, sentimentos, sensações, questões, medos e ideias que, falando por mim (mas não crendo que não fale por todos), tantas vezes já senti, sem nunca conseguir explicar... e ás tantas dou por mim a ler e a sentir-me irrequieto, como se me apetece-se gritar "Yes!" ou "Eureka!" ou abrir uma garrafa de champagne... porque estas palavras estão vivas e falam a verdade... a realidade nua, crua, pura, dura... e por isso mesmo perfeita! vivam este domingo...
"Teoria e prática dos domingos"
Porque são os domingos tão compridos Filomena? Não tenho de estar às nove na Companhia, não tens de estar no infantário às oito e meia, levantamo-nos mais tarde, tomamos o pequeno almoço no café, compramos os jornais, alugamos dois filmes no clube de vídeo
(um policial como eu gosto, um romântico como tu preferes)
ninguém dá ordens, ninguém nos exige nada, ninguém nos aborrece, e no entanto porque são os domingos tão compridos Filomena, porque motivo é sempre a mesma hora no relógio, porque razão me apetece tanto qualquer coisa que nem sei o que é em vez de ficar contigo? eu gosto de ti, palavra, devia sentir-me bem e não sinto, não é mal-estar, não é angústia, é uma sensação vaga, um desconforto, uma inquietação que não entendo e todavia não me concebo sozinho, não me concebo sem ti, gosto da tua cara, do teu corpo, casei contigo por amor, porque são os domingos tão compridos Filomena?
Não tem que ver com o bairro, o bairro agrada-me, não tem que ver com o apartamento, três assoalhadas chegam e sobejam e ainda temos a marquise, a vista, Queluz, o rio, os barcos, se nos apetecer vamos a Sintra ou a Cascais, ao cinema às Amoreiras, vamos olhar as lojas, vamos ao Cacém jogar às cartas com o teu irmão e a mulher, o teu irmão espojado no sofá, de barba por fazer, de mão no queixo, aborrecidíssimo, a mudar de canal e a comer pipocas de um balde de cartão e a mulher na cozinha a enxotar os filhos e a passar camisas a ferro. Para eles os domingos também serão compridos Filomena? Tu enfias-te na cozinha a conversar, eu aceito pipocas e folheio os retratos do cruzeiro que fizeram em agosto a Tangêr
(pessoas sorridentes a jantarem de copo de vinho no ar, um baile a bordo, o teu irmão com um chapéu esquisito na cabeça de braço dado com um árabe de bigode)
o teu irmão para mim, a apontar as fotografias e a mudar para o desporto
- Chateei-me como um urso Alfredo
tu na cozinha
- Dá aqui um pulo amor
para me mostrares o microondas novo, me mostrares um aparelho eléctrico de moer não sei quê
- Em Novembro com o subsídio de Natal comprávamos um assim amor.
o teu irmão lá de dentro, com a boca atulhada de pipocas
- Estão a dar o ténis Alfredo
o apartamento deles é metade do nosso, uma cave, diante de uma churrascaria, com os frangos no espeto a entrarem, pingando molho, pela janela da sala, os frangos que parecem senhoras gordas nuas de joelhos no peito e eu a pensar no comprimento dos domingos Filomena, primeiro que passe das quatro horas da tarde é uma eternidade, é um martírio e não entendo porquê dado que gosto de ti, nem sequer sou infeliz, não sou infeliz, palavra, é uma coisa estranha, um aperto, uma aflição incómoda, não percebo o que quero mas percebo que não é isto que quero, este túnel de horas, esta poltrona óptima durante a semana e desconfortável ao domingo onde não consigo sentar-me, onde não encontro posição. E às sete para casa dos teus pais em Massamá, a tua mãe aborrecidíssima a mudar de canal e a comer pipocas, a cadela quase cega a ladrar-me aos tornozelos, o teu pai, tremendo de entusiasmo por cima da bengala que lhe serve de coluna vertebral desde que lhe deu o ataque, o teu pai de avental, radiante.
- Fui eu que fiz a sopinha fui eu que fiz a sopinha.
Às dez da noite, de Massamá a Queluz é um instante. Há sempre lugar para arrumar o carro na esquina logo a seguir ao talho, as árvores recomeçam a ficar bonitas com a segunda-feira a aproximar-se, os ponteiros do relógio principiam a girar, a ideia de voltar, a ideia de voltar para a Companhia que me há-de deprimir a partir de terça-feira entusiasma-me, a sala tornou-se de repente gira, os vasos de flores, os bambus, o quadro da preta com a criança às costas, torno a ter vontade de te dar a mão, de te beijar, talvez que te faça a surpresa de comprar o aparelho de moer para os teus anos. A lavar os dentes, de pijama, com os pés descalços encolhidos por causa do frio dos azulejos, oiço-te da cama
- Alfredo
e esqueço-me dos domingos, do comprimento dos domingos, do desconforto, da inquietação, do incómodo, deito-me ao teu lado o mais depressa que consigo com a escova dos dentes na boca, o Júlio Iglesias toca baixinho no rádio do despertador, compreendo com muito mais força que te amo, compreendo que te amo para sempre e que pode ser que consigamos sobreviver às pipocas do Cacém, à sopinha de Massamá e aos relógios imóveis, consigamos sobreviver às lojas das Amoreiras e aos cruzeiros a Tânger. Afinal de contas só há um domingo por semana não é, o que é preciso é meter na ideia que só há um domingo por semana, só há um domingo por semana Filomena, a miséria de um domingo de nada por semana. Gosto da tua camisa de dormir de rendas, gosto daquilo a que cheira o teu pescoço, gosto das tuas pernas a enrolarem-se nas minhas. O microondas da tua cunhada não é assim tão caro
- Uma pechincha amor
um insignificante domingo por semana e seis enormes dias inteirinhos para ser feliz.


António Lobo Antunes
"Algumas Crónicas"